domingo, 25 de janeiro de 2015

Lindaura e Vantuir

Curioso pensar que as histórias de amor que se tornam célebres, com poucas exceções, são histórias trágicas. Só para ficar com algumas famosas, temos Romeu e Julieta, Abelardo e Heloísa, Tristão e Isolda, Otelo e Desdêmona, Lucíola e Paulo, Lampião e Maria Bonita, Margarida e Eugênio (primeiro romance que me fez chorar), entre tantas outras narrativas cuja beleza está emoldurada pela tragédia. 
Em Pedra das Ancas, bairro da periferia de Rio Tranquilo, a história que mais se comenta é a do amor quase impossível de Lindaura e Vantuir, membros de famílias inimigas. Seria um remake de Romeu e Julieta ambientado no interior do cerrado, não fosse o fato de Vantuir ser um moleque de 19 anos e Lindaura, uma mulher de quase 40 e mãe de 3 crianças. 
Lindaura era casada com Fabriciano, o Fabrição, gerente da Pedreira Três Marias; e Vantuir era o filho mais novo de Chico Preto, lider de um movimento local que condenava as condições de trabalho dos operários da pedreira. Dona Ordária, esposa de Chico Preto, oferecia para o mulherio da cidade um curso de bordado e pintura em tecido, que poderia gerar renda extra na feira municipal de artesanato. Um tanto entediada com a vida de mãe e dona de casa, Lindaura se matriculou, sem o consentimento do marido, nas aulas de bordado. 
Vantuir estudava para o vestibular, por influência do pai queria ser advogado para defender as causas dos excluídos e explorados de sua terra. Nesta época, quase não saía de casa. Mergulhava nos livros e só se levantava para comer alguma coisa. Em uma de suas idas à cozinha, viu sentados à mesa os olhos de jabuticaba que nunca mais sairiam de sua alma. Eram os olhos de Lindaura. Lindaura, por sua vez, sentiu-se intrigada com o menino que lhe dizia bom dia e lhe demorava os olhos. 
Passaram a se perceber pela cidade: na igreja, em frente à escola, no supermercado, na sorveteria, nas ruas, e os mútuos olhares demorados ocupavam os pensamentos e os sonhos de ambos. Confessaram seus desejos ao padre Anastácio, o único a saber do grande amor que sentiam um pelo outro (porque nem eles mesmos sabiam da reciprocidade dos sentimentos). Um dia, sem que uma palavra fosse dita, suas bocas se encontraram na cozinha de Dona Ordária e este beijo incontido virou cartas de amor e encontros secretos acobertados por padre Anastácio. Mas uma carta de amor extraviada foi cair nas mãos de Fabrição. 
Lindaura implorou para Vantuir ir embora da cidade para não perder a vida, mas ele disse que a vida só fazia sentido se os olhos dela iluminassem seu caminho. E ficou. Fabrição marcou o duelo para as 2 da tarde, pois às 3 tinha marcado um futebol com os amigos. Vantuir nunca tinha pegado num revólver. Tomou emprestado o 38 do seu pai. Eram 14:15 quando Fabrição caiu morto com um tiro certeiro no meio do pescoço. A determinação do amor tinha vencido a determinação da vingança.
Tomou Lindaura pelas mãos e anunciou à cidade inteira o seu amor. Foi preso, mas saiu logo, pois todos testemunharam a seu favor, alegando legítima defesa. O povo de Rio Tranquilo estava em festa, pois tinha um herói que lutava pelo verdadeiro amor, que era pura coragem e que seria advogado e lutaria por ele. Com toda certeza seria prefeito um dia, e depois governador e depois presidente. 
No dia do casamento, a igreja estava linda, toda enfeitada de flores de laranjeira. Gente da cidade e das cidades vizinhas, gente de jornais da capital. Gente rica e gente pobre, todos bem-vestidos. O herói unira a cidade. 
Lindaura entrou inteira vestida de branco, não o branco da pureza virginal, posto que já fora casada, mas o branco da pureza da alma, da bravura do espírito. A longa calda do vestido era cuidada por 6 menininhos vestidos de mini-fraque à esquerda e 6 menininhas vestidas de fada à direita. À frente, Andressinha, a filha de 4 anos de Lindaura, levava as alianças. 
Vantuir não podia se conter, o sorriso tomava conta do rosto e o brilho nos olhos saía igreja afora. Quando a noiva chegou ao altar, ele estendeu a mão para Lindaura e caiu no chão. Com o paletó vermelho de sangue, olhou atordoado para todos os lados e demorou seu olhar sobre sua amada uma vez mais antes de fechar os olhos. 
Fabricinho, filho mais velho de Lindaura e Fabrição, descarregara a arma do pai nas costas de Vantuir.