segunda-feira, 2 de março de 2009

Vinte minutos

Cleyton Boson

"A vida é a arte do encontro, embora existam tantos desencontros nesta vida". Deixo de lado o "poetinha" para ouvir as notícias da comissária de bordo. "Devido a baixa visibilidade no aeroporto de Congonhas, permaneceremos no ar por mais vinte minutos, caso essa situação se mantenha seguiremos para o Rio de Janeiro". Vinte minutos, é o tempo que se estenderão as orações de minha mãe, até ouvir minha voz do outro lado do telefone, informando que já cheguei e está tudo bem. É tempo suficiente, também, para Carolina, de pé na banca de revistas do aeroporto, escolher, em alguma publicação de música ou de arte, a próxima novidade musical (algo que misture África, América e Europa) que ela irá ouvir durante o resto do mês. À minha esquerda, uma gorda senhora, de ferrugens escorridas pelo braço, aperta as mãos do jovem amante (acreditava serem mãe e filho no início da viagem, mas a languidez dos olhares denunciou uma relação menos etérea). Um senhor grisalho à minha frente entoa um mantra quase silencioso e comprime o peito com os dedos da mão direita e eu procuro voltar a meu livro, mas minha cabeça não quer Vinícius, está perdida nos olhos curiosos de Maria Gabriela.26 de dezembro de 2007. Maria Gabriela comeu manga pela primeira vez. Neste mesmo dia, ela conheceu goiaba e abacate. Fico feliz por tê-la apresentado às delícias e diversidades das frutas tropicais. Minha irmã já tinha introduzido a filha nos prazeres das frutas européias – pêra, maçã, pêssego, nêspera, ameixa – mas temia os efeitos dos humores fortes da tropicalidade nos intestinos da criança. De visita à casa de meus pais, propus-me cuidar de Maria Gabriela para que minha irmã e mamãe pudessem participar das liquidações de pós-natal. Papai ficou muito feliz de não conseguir escapar de um dia inteiro de visitas intermináveis a lojas abarrotadas de pessoas histéricas. Como vingança, sorriu com minha apreensão frente a possibilidade de ter que trocar uma fralda cheia de merda.Beijos, abraços, recomendações intermináveis e fiquei a sós com uma bela garota trinta e dois anos mais jovem. No começo a diferença de idade deixou-nos um pouco desconfortáveis, meio sem jeito, mas bastou um início de conversa para que, em menos de uma hora, já estivéssemos rolando no chão. Minha sobrinha já começa a ensaiar seu primeiro ato de rebeldia. Está aprendendo a andar com o auxílio dos móveis, mas, às vezes, solta-se e se aventura a ficar de pé sozinha. Cai, chora, mas continua tentando. Um dia vai conseguir. Eu sei por que, um dia, já fiz isso. Minha irmã também, assim como minha mãe, mas se esqueceu.Num determinado momento da brincadeira, quando eu jogava Maria Gabriela pelos ares, chegou-me uma fome repentina e irresistível por vitamina. Maçã, banana, abacate, mamão... Maria Gabriela você já comeu manga? Cara! É a melhor fruta que existe! Tome um pedaço e veja se gosta. Os olhos dela brilharam. Depois disso, goiaba e abacate foram a natural continuidade do passeio. Um passeio cujas cores não mais são percebidas por minha avó: Dona Madalena.Dona Madalena nasceu em outubro de 1922 e, em 1999, decidiu esquecer as dificuldades da velhice. Esqueceu que era velha, depois esqueceu tio Heitor, filho mais novo e que lhe fazia perder o sono. Bem sucedida nestas duas façanhas, procurou esquecer que era viúva e morava na casa de minha tia. Voltou a morar com meu avô no sítio. Minha tia protestou, "mãe a senhora não está no sítio!", decidiu, então, esquecer minha tia. Nessa brincadeira de esquecimento, um dia ela me esqueceu. Talvez um protesto por eu ter me mudado para São Paulo ou por já não ouvir mais suas velhas histórias com a mesma avidez de quando era criança.Em outubro do ano passado, minha avó esqueceu como é que se andava. Esqueceu, também, como é que se fala e parou de contar histórias. Um mês depois, esqueceu como invocar a fome e parou de comer. A solução foi introduzir-lhe uma sonda para que ela fosse alimentada automaticamente em horários pré-estabelecidos e com a quantidade e qualidade adequada de alimentos. Em minha última visita à sua casa, dois dias antes de Maria Gabriela experimentar manga pela primeira vez, percebi que Dona Madalena está cansada e esqueceu como ser alegre. A abracei com todo o carinho que um neto favorito deve ter por sua avó e deixei claro que ela deve fazer o que a tornar mais feliz. A perdoei por ter me esquecido e fiz-me entender de que não ficaria zangado nem triste se ela resolvesse viajar sem dar maiores explicações sobre para onde iria e quando voltava. Só não prometi não sentir saudade.Saudade é uma coisa a qual me condenei quando saí de minha terra e finquei meus pés em lugares diversos, e amei pessoas e paisagens distantes umas das outras. Desde então, um pedaço de mim sempre está faltando. E mais complicado ainda é que, ao tentar juntar todos os pedaços, eu construo novas saudades e me torno maior, mais espalhado ainda pelo mundo. No exato momento em que a roda da aeronave toca o chão, minha saudade é Carolina.Três meses e um dia antes de Maria Gabriela saber o que era gosto de manga, conheci Carolina. Já passava das seis da tarde e fui ao supermercado, pois minha reserva de alimentos havia acabado fazia três dias e eu já não agüentava comer bolacha recheada no jantar. "Atenção para as superofertas relâmpago! Panetone caseiro quentinho R$ 2, 50 na próxima meia hora. Mas atenção, apenas na próxima meia hora!" Pois foi na fila do panetone que a vi. Alta, com um vestido que parecia ter pertencido à Emília do Sítio do Pica-Pau Amarelo, os cabelos encaracolados, serpenteando sobre os olhos grandes, encobrindo um pouquinho das sardas e um jeito encantadoramente desastrado.Você entende de panetone? Perguntei. Não Muito. Quer dizer que entende um pouco? Eu gosto de panetone, mas sei lá, o que você quer saber? Se esse panetone é bom. Não sei, nunca comprei dessa marca. Na verdade eu só queria puxar assunto.A cantada era ruim, mas como explica meu tio Heitor, aquele que minha avó esqueceu antes de todo mundo, o importante não é a cantada, mas se a moça gosta de seu sorriso. Acho que Carolina gostou de meu sorriso, pois aceitou tomar café expresso comigo. Depois aceitou jantar. Aceitou também um almoço no dia seguinte. E quando me dei conta, eu a via quase todos os dias já fazia um mês. Me dei conta, também, de que ela acalmava minha fome. Embora não sacie minha vontade absurda de beber uma vida inteira num único gole, mergulhar em seus grandes olhos castanhos deixa minha alma tranqüila para caminhar, para entender, ou procurar entender o que sente.Toda vez que desço de um avião sinto que vou derreter de alívio. Não gosto de voar, não gosto de nada que me foge ao controle e entrar num avião para mim é sempre uma aposta. Conhecer pessoas também. Mas desisti do desconforto do ônibus em viagens longas e não se trata de um comportamento burguês, pois o preço das passagens aéreas está tal qual o das rodoviárias. Desisti também de controlar quem entra e sai da minha vida, pois as pessoas não respeitam as minhas regras e se metem alma adentro sem um pingo de pudor, da mesma forma se ausentam. Então, depois de um dia exaustivo de trabalho, você encontra a casa vazia e nenhum bilhete explicativo ou de despedida. Vovó se prepara para ir embora, deixando-me sua história e suas histórias para eu contar para Maria Gabriela que ainda não sabe falar, mas que diz num sorriso escancarado que, se eu deixar, vai amar muito esse tio filho-da-mãe que a deixou um dia inteiro com a fralda cheia de cocô.Carolina acena da banca de revistas. Aceno de volta, fecho os olhos. Balanço a cabeça, abro os olhos. Estou de volta ao meu mundo cotidiano. Mas não sou o mesmo, nunca sou o mesmo depois de uma viagem.

2 comentários:

  1. Como goianiense, fico feliz por um fruto do cerrado saber brincar e conduzir com palavras e comentários. Seu texto é envolvente e relevante. Parabéns.

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  2. "Desisti também de controlar quem entra e sai da minha vida, pois as pessoas não respeitam as minhas regras e se metem alma adentro sem um pingo de pudor, da mesma forma se ausentam"

    HAHAHAHAHAHA..."minhas regras" ?!?!?!?

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